domingo, 7 de agosto de 2011

“SÓ TOMAVA CHÁ, QUASE QUE FORÇADO VOU TOMAR CAFÉ”

Na década de 70, Elis Regina gravou uma canção de Edson Alencar e Hélio Matheus intitulada “Comunicação”. A letra é um instantâneo da perplexidade que a expansão dos meios de comunicação e a multiplicação de seus produtos causavam em alguns segmentos da população brasileira. Tal impacto não se confinava ao universo de preocupações de intelectuais e artistas. A expressão “comunicação” penetrava no cotidiano de significativa parcela da população. A mudança do nome da disciplina escolar “Português” ou “Língua Portuguesa” para “Comunicação e Expressão” ilustra essa ampliação dos domínios do termo e da ideia. No âmbito da própria mídia, o programa humoristico "Satiricom", exibido pela Rede Globo, era subtitulado como "a sátira da comunicação". Chacrinha, o popular apresentador de programas de auditório, talvez tenha sintetizado o “espírito do tempo” na frase “Quem não se comunica se trumbica”.

Comunicar e expressar significavam, como pareciam sugerir os livros didáticos de “Comunicação e Expressão” da época, assimilar a presença cada vez mais intensa dos produtos midiáticos no dia a dia. As aborrecidas lições de gramática e de redação foram “modernizadas” pela utilização de exemplos de uso da língua retirados de notícias de jornal, textos de anúncios e letras de canções. E mesmo elementos de uma nascente ciência da comunicação – pelo menos no Brasil – eram apresentados a quem mal chegava às primeiras leituras. Emissor, mensagem, código, canal, receptor etc. tornavam-se conceitos a serem decorados.

A letra de “Comunicação” trata, sobretudo, da sedução e do constrangimento operados pelos anúncios. Esse era o aspecto mais evidente desse novo estado de coisas que se instalava e consolidava capitaneado pela televisão. O produto que mantém de pé todo o sistema midiático – o anúncio publicitário – “convidava” determinados setores da população a ingressar no mundo do consumo. A massa – para usar um termo ao mesmo tempo consagrado e problemático quando se fala de comunicação midiática – ficaria de fora. Premida pela pobreza ela possuiria apenas uma das metades da senha: a fruição dos anúncios. A senha completa – a fruição dos anúncios e a aquisição dos produtos – pertenceria a uma pequena parcela da população. Alguns estudiosos dos meios de comunicação no Brasil identificam aí uma situação paradoxal, pois a expansão da mídia nos moldes comerciais, sustentada pela veiculação de anúncios publicitários, pressupõe a consolidação de um mercado consumidor de proporções alargadas, o que não existiria ainda naquele momento no país. Consumir, nos termos sugeridos pelos anúncios, era – e ainda é – privilégio de determinados estratos sociais.

Mas a sedução dos anúncios, de certo modo, estendia-se a todos os que tivessem acesso a eles. Os novos produtos do “milagre econômico” nacional eram lançados à sanha dos olhares, como registra a canção: “Sigo o anúncio e vejo/ Em forma de desejo o sabonete/ Em forma de sorvete acordo e durmo/ Na televisão”. De fato, o novo padrão de consumo era apresentado a uma população cujo padrão de vida era marcadamente “indiano” com algumas manchas de padrão “belga” (daí a expressão “Belíndia”, cunhada pelo economista Edmar Bacha para descrever o panorama socioeconômico brasileiro). As telenovelas, os programas de auditório, a indústria fonográfica, as revistas ilustradas, todo o sistema midiático, compunham a atmosfera modernizante plasmada magicamente nos anúncios: “Creme dental, saúde, vivo num sorriso o paraíso/ Quase que jogado, impulsionado no comercial”.

Os personagens midiáticos associados ao mundo do consumo – os “olimpianos”, na denominação usada pelo sociólogo Edgar Morin, que atualmente são chamados pela mídia de “celebridades” – emprestavam credibilidade aos anúncios. São elementos importantes na construção da relação entre o consumidor e os produtos, mesmo que os anúncios sejam “vividos” de modo ambíguo, percebidos simultaneamente como sedutores e constrangedores (“Só tomava chá/ quase que forçado vou tomar café/ Ligo o aparelho, vejo o Rei Pelé/ Vamos então repetir o gol”).

E no mundo mágico dos anúncios, onde tudo está ligado a tudo, onde tudo se mistura, onde a lógica é diversa daquela que orienta o mundo desencantado da vida cotidiana de ampla parcela de indivíduos nas sociedades modernas, o telespectador vive as várias dimensões da esfera midiática. Os relatos jornalísticos, os produtos de consumo, os anúncios e as pesquisas de mercado formam o cenário por onde vaga o desejo do consumidor. Desejo que nunca encontrará seu verdadeiro objeto, como advogam vários críticos. O mundo concreto e o sonho midiático se interpenetram, e o consumidor alucina (“E na rua sou mais um cosmonauta patrocinador/ Chego atrasado, perco o meu amor/ Mais um anúncio sensacional/ Ponho um aditivo dentro da panela, a gasolina/ Passo na janela, na cozinha tem mais um fogão/ Tocam a campainha, mais uma pesquisa e eu respondo/ Que enlouquecendo já sou fã do comercial”).

Desse modo, um produto da mídia (a canção popular) refletia sobre as implicações de todo o sistema sobre os comportamentos propostos pela nova ordem do consumo que se instalava. A comunicação midiática começava a se espraiar definitivamente no cotidiano brasileiro.

2 comentários:

  1. E a gente vive a sonhar com a vida risonha do comercial de margarina.Na ausência dela, colocamos colesterol nas veias para suportar a tal vidinha café com pão.Comerciais vendem sonhos, mas são dos produtos que eles anunciam que mais perto chegamos dessa tal vida.

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