terça-feira, 19 de julho de 2011

A MÍDIA E OS MONSTROS

Dois episódios recentes que receberam maciça cobertura da imprensa nacional e estrangeira são reveladores da dimensão mítica e da linguagem fabulosa do jornalismo, considerado uma narrativa firmemente ancorada no factual. O primeiro é a matança de doze crianças promovida por um homem que invadiu uma escola municipal no bairro carioca de Realengo. De repercussão mais ampla, a execução por agentes americanos de Osama Bin Laden, líder do grupo Al Qaeda, responsabilizado por atentados terroristas em várias partes do mundo, é o segundo desses episódios.

A matança de estudantes em escolas e universidades tem ocorrido com frequência nos Estados Unidos e, em menor número, em países da Europa. Os executores tanto têm sido pessoas vinculadas às instituições em que isso ocorre quanto estranhos a elas. O motivo alegado para esses atos, via de regra, é algum tipo de humilhação sofrida por essas pessoas, principalmente nas próprias instituições. Outra importante constante registrada pela mídia é o planejamento minucioso dessas ações, que envolve a compra de armas, o treinamento no seu uso, o estabelecimento de uma estratégia e a documentação escrita e em imagem das várias fases da empreitada, inclusive da justificativa e de instruções relativas aos desdobramentos, como o suicídio ou a morte em combate do autor. Dessa forma, esses massacres se caracterizariam como ações extremamente racionalizadas.

De acordo com o noticiário, Osama Bin Laden era membro de uma família milionária que estudou engenharia na juventude e se tornou líder de um grupo organizado numa extensa rede pelo mundo, recrutando e treinando adeptos para cometer atentados contra os Estados Unidos e seus aliados. O arremesso de dois aviões com passageiros contra as Torres Gêmeas, em Nova York, é o mais conhecido deles. Um dos atributos de Bin Laden, ainda segundo a imprensa, seria a capacidade de conquistar seguidores para a sua causa e de convencê-los a cometer até mesmo ataques suicidas. Nas conjecturas sobre a sucessão na liderança da Al Qaeda, destaca-se que o provável novo chefe da organização não teria o mesmo “carisma” de Osama.

O que há em comum entre esses dois personagens – Wellington, o atirador de Realengo e Bin Laden –, é o qualificativo de “monstro” que ambos receberam em vários veículos jornalísticos. Mas nesses dois episódios, em particular, mas também em muitos outros de mesma natureza, o planejamento minucioso, a concepção e a articulação das ações seriam resultado de um trabalho de alto nível de racionalidade e de manejo das emoções, próprios dos seres humanos. Nesse sentido, para além das figuras jurídicas de “homicida” e de “terrorista” relativas aos atos desses indivíduos, a figura do “monstro” merece algumas considerações.

Usado comumente pela imprensa para qualificar o autor de transgressão que se destacaria pela amoralidade, crueldade e/ou extensão, o termo “monstro” promoveria uma “desumanização” do indivíduo na medida em que põe sob suspeita o seu caráter humano. A palavra “monstro” refere-se a seres mitológicos, sendo empregada na linguagem midiática em oposição a “humano”. Além de expressar o grau de indignação moral despertada pelo crime, o qualificativo deixa entrever uma determinada concepção de “ser humano” tomada como referência. O “monstro”, nesse sentido, não seria um “ser humano”, pois não possuiria os atributos que definiriam este último. 

Essa concepção de ser humano está bastante impregnada pela ideia de elevação moral e de perfeição. O ser humano seria dotado de um conjunto de determinadas características tomadas como positivas, algumas inatas e outras adquiridas pela inserção adequada em determinadas instituições. O grau de humanidade medido por essa escala serviu e serve para distinguir e hierarquizar povos, grupos dentro de povos e pessoas dentro de grupos. Talvez o uso mais eficiente e extenso desse mecanismo de exclusão tenha sido feito pelas sociedades ocidentais em suas inúmeras empresas imperialistas. 

Além de expressar a condenação moral do transgressor, a figura jornalística do “monstro” coloca o indivíduo num plano ambíguo. Ele teria cometido um ato condenável ao qual se aplicariam as leis vigentes num determinado grupo humano, mas, esse é o sentido subjacente, ele não é humano, diferindo, portanto, dos demais indivíduos. Uma das conclusões lógicas dessa construção da linguagem mítica do jornalismo é que ao “monstro” as leis que regulam os demais não se aplicariam. Portanto, nesse plano, ou ele não seria responsabilizado pelos seus atos ou poderia ser punido ao arrepio da lei, com a execução sumária, por exemplo. O “monstro” estaria, desse modo, muito mais submetido ao julgamento moral que ao legal. 

Desse modo, a linguagem da mídia, além de por em questão a natureza das leis estabelecidas, tenderia a ocultar um dos golpes mais dolorosos na autoimagem dos indivíduos das sociedades modernas, o de admitir que não há um padrão definido de humanidade, admitir que o mais abominável dos criminosos é uma das possibilidades do ser humano.        

JORNALISTAS SABEM TUDO OU O MUNDO SEGUNDO A IMPRENSA

Nas últimas semanas, tem sido um assunto constante na imprensa em geral o aumento das taxas de inflação no Brasil, depois de um período de relativa estabilidade. Reportagens, colunas e editoriais dedicam-se a explicar ao consumidor de notícias o que está ocorrendo e, muitas vezes, a expor quais são os fatores que provocam o fenômeno de alta generalizada dos preços e como os agentes envolvidos – principalmente o governo – devem proceder para controlá-lo.

Há certos assuntos como esse que parecem despertar nos jornalistas uma compulsão por revelar as verdades do mundo e a receita da vida. Os jornalismos político e econômico, em particular, são terrenos férteis para o discurso clarividente e de tom prescritivo. Quando se trata de esportes, notadamente o futebol, essa tendência se verifica ainda com mais intensidade. Mas esse é um caso à parte, uma vez que, por mais significativos que sejam para determinada parcela da população, raramente os esportes causam impacto comparável ao das esferas da política e da economia, ainda que estejam intimamente ligados a ambas.

Sobre as intrincadas relações de poder do que se convencionou chamar de política, são comuns as análises e a oferta de soluções baseadas num ideário gerencial. Muitos jornalistas dão a impressão de saber resolver com meia dúzia de ideias vertidas em poucas linhas questões seculares de governo e de Estado correntes nos mais diferentes contextos históricos. Tudo se passa como se tratasse apenas da adoção de um determinado programa de ação que lhes parece evidente, e que deveria assim também ser percebido pelos agentes envolvidos, a começar pelo destinatário das notícias.

Numa revista como Veja, por exemplo, é usual encontrar diagnósticos da cena pública brasileira acompanhados de receituários. Reportagens sobre o que se consideram mazelas nacionais – corrupção, saúde, educação, segurança pública etc. – costumam servir também para demonstrar a incapacidade e, por vezes, a dispensabilidade das instituições envolvidas, sejam elas quais forem. A imprensa, nesse aspecto, torna-se repositório daquilo que as instituições, os agentes e o consumidor de notícias deveriam saber para bem proceder. Tudo é muito claro, direto e supostamente eficaz, como na linguagem dos manuais técnicos. Muitas vezes os imponderáveis dos conflitos variados de interesses e de pontos de vista subjacentes a esses problemas são reduzidos a uma incapacidade dos envolvidos de fazer a coisa certa.

Os assuntos classificados como econômicos também não escapam a essa tendência. Digam respeito à gestão de recursos dos governos e empresas ou à esfera privada dos endividados, há sempre uma solução inequívoca. Na maioria das vezes inspirados em teorias econômicas conservadoras, repete-se incessantemente que para evitar a alta de preços o recurso é promover uma recessão, apesar das suas conseqüências desastrosas. Quanto à economia doméstica, vicejam em todas as mídias, mesmo em programas de televisão de grande audiência como o Fantástico da Rede Globo, os consultores com suas planilhas, prontos para ensinar o que fazer com o dinheiro, como consumir e como poupar para gastar mais adiante. As decisões são bastante racionais, técnicas, sem conflitos insolúveis, livres das paixões, justamente numa arena governada por desejos e fantasias.

Também nessa área, algumas poucas ideias alinhavadas numa coluna diária pretendem dar cabo de densos fenômenos como desenvolvimento econômico, mercado de trabalho ou inflação. E aí também se repete a tendência à univocidade. Diferentes autores em diferentes veículos escrevem quase a mesma coisa sobre o mesmo assunto. E, de modo geral, fazem afirmações que podem deixar um hipotético consumidor de notícias mais atento desconfiado quanto à sustentação delas. Mais ainda, despertam a suspeita sobre a que realidade se referem.

Um tema recorrente nos últimos anos – o “apagão de mão-de-obra” – ilustra a questão do tom prescritivo, da univocidade e da distância entre algumas áreas do jornalismo e o cotidiano do consumidor de notícias. A fórmula da escassez de trabalhadores qualificados e do entrave que isso significaria para a dinâmica da economia é repetida com constância. Quase nunca ela é posta em confronto com dados empíricos sobre multidões de desempregados ou com a estrutural tendência de contenção dos salários que a reserva de mão-de-obra permite, nem se questiona o que, de fato, diz esse diagnóstico, possivelmente oriundo das consultorias e departamentos de RH. Mas a solução é sempre evidente e única: qualificação da mão-de-obra, seja lá o que isso significa.

Com respostas prontas e sem arestas, os jornalistas não estariam escrevendo para quem busca informação – o receptor típico do ideário profissional –, mas para quem se predisponha a compartilhar das mesmas crenças. A dúvida, a incerteza, o olhar distanciado e a desconfiança em relação aos assuntos de que tratam não parecem ser tolerados. O jornalismo, nesse sentido, deixa de ser uma prática discursiva e passa realmente a acreditar que encarna o papel tantas vezes a ele atribuído de Quarto Poder num regime democrático. Amparado em dogmas e fórmulas, no entanto, o jornalismo se inspiraria muito mais em princípios teocráticos de iluminação e revelação.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

BBB, VALORES, EMOÇÕES E O CONTROLE REMOTO

Circula na internet uma crônica atribuída ao escritor Luiz Fernando Veríssimo que faz críticas arrasadoras ao programa Big Brother Brasil apresentado pela Rede Globo. Veríssimo já negou a autoria de mais esse texto em sua coluna no jornal O Globo, mas a repercussão que tiveram as críticas na tagarelice planetária dos sites e blogs varia da saudação efusiva, com declarações de concordância irrestrita, a ofensas ao autor por parte de hipotéticos apreciadores do programa. Independentemente da autoria e do fato de que um comentário sobre o “mito” acaba por se tornar parte do “mito” – fenômeno há muito observado pelos antropólogos –, o texto é um bom pretexto para refletir sobre a relação entre mídia, valores e emoção, tema que estaria na raiz dessa polêmica.

A principal acusação feita no texto ao BBB é de que não se trata de um programa cultural ou educativo, pois não ensina aos espectadores conceitos como valor, ética, trabalho e moral. De fato, essas observações correspondem a uma particular expectativa iluminista de esclarecimento e de educação das massas que há muito se deposita na mídia. Jornal, revista, livro, rádio, cinema, televisão, internet etc. são considerados, nessa perspectiva, instrumentos nobres na batalha contra o obscurantismo, o mito, a fantasia, a irracionalidade, o descontrole das emoções, obstáculos ao surgimento do esclarecido Homem Moderno. No entanto, os últimos três séculos de história das sociedades ocidentais – período de desenvolvimento e consolidação da mídia – insistem em negar essas esperanças. Num retrato necessariamente rudimentar e apressado, ou manter as massas mergulhadas nas trevas tem se mostrado mais rentável econômica e politicamente para os estratos dominantes ou as massas verdadeiramente se recusam a ser esclarecidas.

Tentando ir além dessa visão imediata que se inclina a atribuir unicamente a interesses comerciais e de poder os rumos tomados pela mídia – o alto faturamento é um dos argumentos expostos na crônica que atestaria a imoralidade do BBB –, não se deve esquecer que ela padece de um “pecado original”. Tal como se configura atualmente, a mídia é fruto da sociedade ocidental moderna capitalista. O sistema que hoje envolve o planeta foi construído sob a orientação dos valores dessa sociedade, em que pesem as tentativas de imprimir outras direções. É sob as ideias de progresso material e de lucro, sustentadas por valores como individualismo, autonomia, esclarecimento etc. – nem sempre explícitos –, que todo o aparato técnico foi desenvolvido, que se fundaram empresas de todos os tamanhos dedicadas a elaborar produtos simbólicos para serem oferecidos no mercado. Mídia e capitalismo seriam, portanto, indissociáveis.

Mas há um outro ponto, motivo de “vergonha e indignação” do autor das críticas ao BBB, que é o fato de essa “aberração” ter uma enorme audiência. Muitas respostas já foram dadas sobre essa questão. Boa parte delas, mais ou menos explicitamente, atribui a uma espécie de poder encantatório dos produtos da mídia a sedução dos consumidores. Esse poder teria a ver com a oferta de fantasias alienantes, com imagens de uma existência menos dura, que mergulhariam os telespectadores, ouvintes ou leitores num estado de torpor, afastando-os da realidade cotidiana e abrindo brechas para que manipuladores de todos os tipos conduzissem suas vidas. Além disso, os meios de comunicação tenderiam a satisfazer “os instintos mais baixos” dos indivíduos, principalmente quando oferecem doses maciças de sexo, violência, disputa, intriga, mexerico e experiências consideradas incomuns, expondo as “misérias humanas”. As “baixarias” seriam o ingrediente preferencial de programas como o BBB.

Para um projeto de sociedade que considera a mídia como um instrumento de elevação intelectual e moral dos indivíduos, o jogo de emoções promovido em tempo integral por todo o sistema constitui objeto de reprovação e alvo de necessária reforma. Mas quando se avalia a mídia por esse ângulo, tende-se a desqualificar as experiências emocionais dos consumidores, normalmente percebidas como ilegítimas ou falsas. As emoções advindas da fruição dos produtos simbólicos seriam o resultado indesejável, pois o objetivo deveria ser promover a autonomia, o esclarecimento e a capacidade de apreciar o bom e o belo. Senhor de si, educado e ilustrado, moralmente firme e de sensibilidade estética apurada: eis o indivíduo para cuja produção a mídia deveria contribuir.

Se o mais típico dos telespectadores mantém a sua televisão ligada no BBB, pode-se supor que, em alguma medida, isso lhe proporciona prazer, satisfação, enfim, atenda às suas demandas de experiências emocionais. Amar, odiar ou sentir compaixão à distância pelos personagens confinados numa casa – e milhões de consumidores de produtos midiáticos confirmam isto ao redor do planeta – integra a experiência existencial do indivíduo moderno. Essas experiências seriam tão reais para ele quanto aquelas que nascem da interação face a face com outros indivíduos.

É por isso que, numa demonstração de desprezo, fastio, nojo ou tédio provocado por um programa, o telespectador pode usar o controle remoto, mudar de canal ou simplesmente desligar o aparelho. Assim, além de mostrar sua incontestável autonomia, o telespectador faz, emocionalmente, a mais contundente e eficaz crítica possível à mídia.