quinta-feira, 1 de setembro de 2011

UM ANTIÁCIDO PARA A MODERNIDADE

Um permanente mal-estar ronda o cotidiano moderno. E não seria difícil identificar suas manifestações em vários aspectos da vida. Da cultura à política, da economia ao sexo, tudo parece ser causa de desconforto para determinada parcela da humanidade. O tédio, a indiferença e o fastio caracterizariam esse “espírito do tempo”. Não é por outro motivo que se procura o “alívio imediato”, de todas as formas, desesperadamente

Na cultura – o acesso por excelência às entranhas da vida moderna – o sintoma mais evidente seria o rebaixamento mais ou menos generalizado das manifestações estéticas à banalidade. No atual estágio da modernidade, isso tem a ver com a crítica que se faz à produção simbólica da mídia. Nessa perspectiva, não tem feito outra coisa quase a totalidade da programação televisiva. São os reality shows, os programas de exploração das misérias humanas, de jogos e de auditório suficientes para indignar os críticos. O cinema também não escapa a essa lógica do mal-estar: nove entre dez filmes tem como principal ingrediente explosões, tiros à queima-roupa e uma história, em geral, enraizada no vazio.

Caracterizar esses aspectos da cultura como sintomas indica bem que o mal-estar não seria uma consequência dessas manifestações, como poder-se-ia ingenuamente pensar. Essas manifestações, na verdade, podem ser tomadas como tentativas de alívio dos desconfortos de viver. O que se procura é escapar de uma insatisfação que está relacionada às injunções da vida nas condições daquilo que se convencionou chamar de modernidade. Aliás, para alguns autores estaríamos vivendo a pós-modernidade; para outros, esta seria ainda uma fase da modernidade, “modernidade tardia”, “modernidade reflexiva”, “modernidade líquida”, “hipermodernidade”, entre outras denominações. O mal-estar permaneceria o mesmo, independentemente do qualificativo.

O que parece ocorrer é uma hipertrofia da insatisfação e uma ampliação das situações percebidas como desagradáveis pelos indivíduos. O desconforto inflado pode ser notado em pelo menos duas situações exemplares: o horror à introspecção e a tendência a transformar situações até então integradas ao fluxo da vida em “problemas”. E esse é o cenário de sensibilidades em que opera a mídia. Isso não significa que a mídia se aproveite das carências ou fraquezas dos indivíduos para insidiosamente submetê-los, dominá-los, conduzi-los. Parece menos fantasioso pensar que ela oferece, na verdade, é uma espécie de lenitivo para as contrariedades, dissabores e insatisfações da vida cotidiana. Isso também não quer dizer que se recorra à mídia como a uma farmácia. O mal-estar moderno possuiria um contorno difuso, isto é, embora os indivíduos o sintam, desconhecem sua causa e também o remédio que o eliminaria completamente. O alívio temporário do mal-estar pode ser encontrado na religião, nas drogas, nas terapias ou mesmo em práticas mais banais. Não se pode negar que há nas práticas cotidianas momentos de alívio, de mitigação das insatisfações. Uma delas seria o consumo dos produtos da mídia, nas condições de normalidade e cotidianidade em que ocorre para significativa fração da humanidade.

A primeira das situações tomadas como sintomas da hipertrofia do mal-estar – a tendência a evitar a introspecção a qualquer custo – pode ser ilustrada pelo consumo intensivo de produtos da mídia. Não é estranha a um cada vez maior número de indivíduos a incorporação da mídia “naturalmente” ao cotidiano. A televisão deve estar ligada, mesmo que a ela não se preste atenção; no carro, o rádio, o CD player ou qualquer outro aparelho de reprodução de sons e imagens fazem parte dos instrumentos necessários à condução do veículo; em diversos outros ambientes é preciso ter algo com que se “distrair”, individual ou coletivamente. A música é muitas vezes ouvida em alto volume; um programa de televisão precisa ser ágil, veloz, os jornais e revistas devem despertar o fascínio, a curiosidade, encher o cotidiano. A internet, por sua vez, é a tentativa mais próxima de realização da fantasia de comunicação total que paira na atmosfera. 

Tudo remete a uma janela permanentemente aberta, a uma paisagem em constante e acelerada mudança. Continuamente solicitado pelos estímulos exteriores, o indivíduo cada vez menos teria oportunidade de encontrar consigo mesmo. A introspecção, percebida como um terrível desconforto, deve ser, sempre que possível, afastada do cotidiano. Não há porque se defrontar com a incômoda companhia da interioridade se há um mundo de sons e imagens que conforta, apazigua e suspende a dor de “ser por si” do homem moderno.

A inflação do desconforto também se deixa perceber pela profusão de materiais midiáticos destinados a resolver toda sorte de “problemas” do indivíduo. Programas de televisão e de rádio, revistas, livros de autoajuda, filmes, músicas e “terapias comunicacionais” parecem empenhados em resgatar os navegantes da modernidade à deriva no oceano de opções de estilo de vida. Engordar, emagrecer, envelhecer, viajar ou ficar em casa, tudo se transforma num problema. As relações afetivas e profissionais, o sexo, a roupa, os sentimentos, atividades banais do cotidiano, tudo passa a ser tema de conselhos, orientações, modelos e fórmulas para o comportamento. Uma suposta inabilidade crônica de “levar a vida” parece atingir as pessoas, que recorreriam a esses “manuais de sobrevivência”. A julgar pelo volume e variedade desses materiais, quase todos os comportamentos para a condução da vida seriam causa de perplexidade, dúvida, inquietação. Por conseguinte, se o rol de questões percebidas como problemáticas cresce, multiplicam-se as “soluções” oferecidas pela mídia. Para cada problema, independentemente da sua natureza, uma solução. Às vezes, várias, transformando a escolha da solução adequada em mais um problema.

Defrontar-se com a própria interioridade em situação de normalidade na corrente da vida e buscar soluções para os próprios problemas parecem angustiar o indivíduo moderno. Viver por si, nas condições que a modernidade forjou, causa náusea, vertigem, desconforto, incômodo, mal-estar. Busca-se, então, um antiácido existencial para esse estado de coisas. Desesperadamente.