Em artigo publicado na edição de julho de 2011 da revista Cult, a filósofa Marcia Tiburi esboça uma reflexão sobre os descaminhos da noção de felicidade corrente nas sociedades modernas. De acordo com a autora, tem sido perigoso usar a palavra felicidade em razão do seu emprego nas falsas promessas da publicidade e da literatura de autoajuda. O “ideal ético de uma vida justa” formulado pela filosofia grega clássica teria se transformado numa “indústria cultural da felicidade”. Sob o capitalismo, a noção de felicidade estaria associada ao consumo, sendo vendida em “discursos prontos” nos quais as pessoas estariam cada vez mais inclinadas a acreditar.
Para a autora, a fim de preservar o sentido transcendente da felicidade, seria necessário separar a enganosa “felicidade publicitária” que promove a sacralização do consumo da felicidade filosófica, esse “estado natural do pensamento reflexivo”. Confrontando as duas noções de felicidade propostas, Tiburi busca mostrar a superioridade moral e legitimidade da felicidade que significa “o prazer da reflexão que ultrapassa qualquer contentamento” em relação à felicidade capitalista, produtora de “zumbis” que vagam pelos shoppings e farmácias em busca de alento.
Na verdade, o artigo tenta dar conta da conexão entre felicidade e mídia criada nas sociedades modernas, na medida em que o ponto de ataque é a “felicidade publicitária”. Tiburi afirma que “a ausência de pensamento característica dos nossos dias” tornaria os indivíduos incapazes de agir lucidamente. Desorientados, eles passariam a confiar cada vez mais nos “discursos prontos” que prometem a felicidade, nas “verdades estabelecidas” oriundas de diversas fontes, entre elas a propaganda. Esta última promoveria uma “sacralização” da felicidade capitalista, aquela que estaria ao “alcance dos dedos e não promete um depois”. Para a autora, essa noção de felicidade “pronta” associada ao consumo seria “a morte da felicidade por plastificação”.
O artigo parece moldado numa tradicional matriz de pensamento empenhada na denúncia dos “males da civilização”, portadora da dimensão romântica que animou em parte o desenvolvimento das ciências humanas. Ele se inscreve no longo rol de diagnósticos cujo objetivo é desvelar o caráter problemático da experiência moderna da felicidade. E, como tantos outros do gênero, parece atribuir pouca ou nenhuma importância às experiências subjetivas dos indivíduos em nome de princípios normativos pretensamente transcendentais. Nesse sentido, o que deveria ser a experiência da felicidade segundo um padrão explicitamente restritivo (“condição natural dos filósofos”) torna-se mais relevante do que a felicidade tal qual é “vivida” pelos indivíduos em seus contextos particulares.
Definir o que é a felicidade tem sido tarefa destinada ao fracasso como indicam as controvérsias sobre a matéria amparadas por um longo esforço de reflexão sobre o “bem supremo”. Um filósofo da envergadura de Immanuel Kant, por exemplo, afirma que a felicidade possui um caráter tão indeterminado que não se consegue defini-la de forma definitiva e coerente. Essa asserção é ratificada por muitos estudiosos do tema que se deparam com essa dificuldade. Em contrapartida, há os que optam por uma abordagem pragmática, elegendo determinados aspectos da existência das pessoas como definidores de estados emocionais reconhecidos como felicidade.
A conexão entre a mídia, o consumo e a experiência da felicidade nas sociedades modernas ocidentais parece ser um dado inegável. A relação entre a ampliação do progresso material e a felicidade, expressão de determinada noção de civilização, está firmemente arraigada no imaginário moderno orientado pelo primado da razão do Iluminismo europeu. A ciência, a técnica e a política seriam responsáveis por prover o bem-estar à humanidade, e a felicidade passa a ser tomada como um valor que deve orientar todas as esferas da existência. A felicidade deveria ser experimentada por todos, aqui e agora.
A ascensão e a consolidação da cultura de massa nos séculos XIX e XX reorientam a discussão sobre a felicidade. O imaginário midiático compartilhado por parcelas cada vez mais amplas da humanidade redefiniria os padrões pelos quais avaliar as possibilidades de uma existência “feliz”. As promessas de felicidade embutidas nas realizações e nos discursos da modernidade, nesse sentido, estariam associadas à mídia. A onipresença da felicidade como tema e como ideia organizadora da própria fruição dos produtos da mídia assinalam fortemente essa vinculação. Um dos principais fundamentos da modernidade – o direito à felicidade individual – e uma da suas instituições mais representativas – a mídia – estariam, portanto, articulados. Da prensa tipográfica de Gutenberg ao ciberespaço, o sistema da mídia, assim como outras instituições modernas, repousaria na ideia de que cabe à humanidade obter e conservar um determinado estado emocional concebido como felicidade. E imaginar essa felicidade estaria entre as tarefas socialmente outorgadas à mídia.
Continua na próxima coluna.
Para a autora, a fim de preservar o sentido transcendente da felicidade, seria necessário separar a enganosa “felicidade publicitária” que promove a sacralização do consumo da felicidade filosófica, esse “estado natural do pensamento reflexivo”. Confrontando as duas noções de felicidade propostas, Tiburi busca mostrar a superioridade moral e legitimidade da felicidade que significa “o prazer da reflexão que ultrapassa qualquer contentamento” em relação à felicidade capitalista, produtora de “zumbis” que vagam pelos shoppings e farmácias em busca de alento.
Na verdade, o artigo tenta dar conta da conexão entre felicidade e mídia criada nas sociedades modernas, na medida em que o ponto de ataque é a “felicidade publicitária”. Tiburi afirma que “a ausência de pensamento característica dos nossos dias” tornaria os indivíduos incapazes de agir lucidamente. Desorientados, eles passariam a confiar cada vez mais nos “discursos prontos” que prometem a felicidade, nas “verdades estabelecidas” oriundas de diversas fontes, entre elas a propaganda. Esta última promoveria uma “sacralização” da felicidade capitalista, aquela que estaria ao “alcance dos dedos e não promete um depois”. Para a autora, essa noção de felicidade “pronta” associada ao consumo seria “a morte da felicidade por plastificação”.
O artigo parece moldado numa tradicional matriz de pensamento empenhada na denúncia dos “males da civilização”, portadora da dimensão romântica que animou em parte o desenvolvimento das ciências humanas. Ele se inscreve no longo rol de diagnósticos cujo objetivo é desvelar o caráter problemático da experiência moderna da felicidade. E, como tantos outros do gênero, parece atribuir pouca ou nenhuma importância às experiências subjetivas dos indivíduos em nome de princípios normativos pretensamente transcendentais. Nesse sentido, o que deveria ser a experiência da felicidade segundo um padrão explicitamente restritivo (“condição natural dos filósofos”) torna-se mais relevante do que a felicidade tal qual é “vivida” pelos indivíduos em seus contextos particulares.
Definir o que é a felicidade tem sido tarefa destinada ao fracasso como indicam as controvérsias sobre a matéria amparadas por um longo esforço de reflexão sobre o “bem supremo”. Um filósofo da envergadura de Immanuel Kant, por exemplo, afirma que a felicidade possui um caráter tão indeterminado que não se consegue defini-la de forma definitiva e coerente. Essa asserção é ratificada por muitos estudiosos do tema que se deparam com essa dificuldade. Em contrapartida, há os que optam por uma abordagem pragmática, elegendo determinados aspectos da existência das pessoas como definidores de estados emocionais reconhecidos como felicidade.
A conexão entre a mídia, o consumo e a experiência da felicidade nas sociedades modernas ocidentais parece ser um dado inegável. A relação entre a ampliação do progresso material e a felicidade, expressão de determinada noção de civilização, está firmemente arraigada no imaginário moderno orientado pelo primado da razão do Iluminismo europeu. A ciência, a técnica e a política seriam responsáveis por prover o bem-estar à humanidade, e a felicidade passa a ser tomada como um valor que deve orientar todas as esferas da existência. A felicidade deveria ser experimentada por todos, aqui e agora.
A ascensão e a consolidação da cultura de massa nos séculos XIX e XX reorientam a discussão sobre a felicidade. O imaginário midiático compartilhado por parcelas cada vez mais amplas da humanidade redefiniria os padrões pelos quais avaliar as possibilidades de uma existência “feliz”. As promessas de felicidade embutidas nas realizações e nos discursos da modernidade, nesse sentido, estariam associadas à mídia. A onipresença da felicidade como tema e como ideia organizadora da própria fruição dos produtos da mídia assinalam fortemente essa vinculação. Um dos principais fundamentos da modernidade – o direito à felicidade individual – e uma da suas instituições mais representativas – a mídia – estariam, portanto, articulados. Da prensa tipográfica de Gutenberg ao ciberespaço, o sistema da mídia, assim como outras instituições modernas, repousaria na ideia de que cabe à humanidade obter e conservar um determinado estado emocional concebido como felicidade. E imaginar essa felicidade estaria entre as tarefas socialmente outorgadas à mídia.
Continua na próxima coluna.